terça-feira, 28 de setembro de 2010

Sobre o partir

Tudo o que fazia na vida era esperar. Era seu passatempo favorito, pois sabia que todo tempo que passa é passível de preenchimento. Preenchia o seu com espera e pensava este modo de rechear os momentos como algo que lhe era exclusivo. Então percebeu que não era só em seu banco de espera. Encontrou entre seus pares de preenchimento temporal um que lhe fez não mais lembrar do tempo. Notou que sua presença também provocava a mesma reação em tal par. Decidiram por unirem seus tempos e preencherem-se enfim. Juntos, agora já não ligavam se os tempos eram de sol ou de chuva, de inverno ou verão. Bastava tempo para seus tempos e todo tempo era tempo bom.
Certo dia marcaram um encontro. Um atrasou-se. O outro não esperou que chegasse e partiu. Não mais se viram. Anos mais tarde, o que partiu descobrira que naquele tempo amou. Teve consciência de seu amor e da partida inevitável ao ouvir no rádio uma canção. Em versos simples fez a questão de anos silenciar: "O amor não sabe esperar."

Pedro pedreiro - Chico Buarque


domingo, 26 de setembro de 2010

Concretamente fluvial




Mio de gato preto

do outro lado do rio.

Destilado? Nada!

Cio em silêncio. Vinho no frio.




Socorro - Arnaldo Antunes/Alice Ruiz

sábado, 25 de setembro de 2010

Recuerdos de Tacuarembó

Faltam-me férias. Mas já foram muitas em outrora. Lembro-me nitidamente ainda criança das de verão. Pareciam intermináveis. Intermináveis, coloridas e sonoras. Tudo em minha volta explodia em cores e som. A grama tornava-se ainda mais verde. A cigarra, não contentando-se apenas em cantar, todas as manhãs oferecia um concerto de rock no melhor estilo Rolling Stones. Mas antes que a danada passasse a cobrar ingresso em nosso próprio jardim, papai vinha com a mesma solução todos os anos:
-Vamos para o Uruguai!
E lá íamos nós. Nem Punta del Leste, nem Maldonado. Tacuarembó. Papai gabava-se por esta ser "...a cidade natal de Carlos Gardel!!". Lá descobri que o Tango - produto tipo exportação Argentino - é na verdade uruguaio de quatro costados.
Minhas memórias de infância mais vívidas são tacuaremboenses. Guardo até hoje uma imagem da qual, acredito, não me divorciarei passe o tempo que for. Papai me colocava na garupa de uma bicicleta emprestada. Atravessávamos a ponte sobre o Arroio Tacuarembó e quando esta terminava, entrávamos numa pequena estrada de terra. Escoltados pela vegetação nativa, nos deparávamos ao final da trilha com um casebre de madeira que possuia uma chaminé exalando fumaça e aroma de chá verde.
Quem lá habitava era uma senhora cujo nome nunca soube. Recordo sua veste de todos os anos. Vestido negro com estampa rococó em branco. De sua face pouco guardei. Mas seus cabelos alvos feito algodão causaram-me tamanha impressão que acabei por decorar a posição de cada fio em seu solo capilar. Bem como a disposição das sílabas castelhanas de uma simples frase:
- Después de haber perdido sus manos, ella tocó la almohada.
Não me recordo o contexto e nem quem era ella. Mas posso afirmar com certeza que tal imagem fez de mim eclodir a mais fervente lava que um vulcão já produzira. Céus! Como não ter mãos e ainda assim tocar?! Seria um não ter coração e pulsar. Ter a lua apagada e feito um enamorado distraído, enluarar-se.
Naquele verão fomos embora de Tacuarembó e não mais voltamos. Não, não enjoamos da ponte, da senhora ou do Gardel. Faltam-me férias apenas. Mas não falta-me Tacuarembó. Ela permanece em minhas memórias.
Hoje penso compreender melhor a frase. Para mim o fato de tocar a almofada quando lhe faltaram as mãos tornara ella tão macia quanto a almofada. Transmutou-se ella em almofada. Que sigamos seu rumo. Se faltar pulsação, que viremos coração. Se o luar sucumbir, que nos tornemos lua.

Na redação de volta às aulas pude mostrar à classe o quanto aprendi sobre a ausência. Que mesmo sem mãos, toca-se. Que mesmo sem férias, há Tacuarembó.

Mar e lua - Chico Buarque



quinta-feira, 23 de setembro de 2010

Pesares e olhares

De tanto andar pelos mesmos lugares todos os dias, meus pés já decoraram por onde ir. Sabem qual a melhor pisada para o pior dos obstáculos urbanos, seja pedra, buraco ou casca de fruta. Serelepes, adoram os dias de chuva intensa e divertem-se com o balé com que riscam o ar ao pularem de poça em poça. São crianças na plenitude da infância (apesar do tamanho 45!).
O que lá em baixo foi automatizado com o passar dos anos e ganho de quilometragem, não ocorre do mesmo modo na chamada janela da alma que em mim se encontra. Por ela nada passa despercebido. Diferentemente de meus pés que estão sempre em luta constante para desprenderem-se de quem os (su)porta e então chegarem logo ao destino, no peitoril de minha janela somente se debruça quem por mim é convidado!
Explico. Quando estou passageiro de meus pés, gosto de trocar olhares com outras pessoas. Não olhares furtivos. Olhares que escancarem verdadeiramente as janelas de nossas almas. Sinto-me mais humano (e menos passageiro) quando tal abertura ocorre. Como quem recebe a visita de alguém no período da tarde, sinto como se uma parte da pessoa que teve indiscretamente sua janela observada, tenha sido deixada em cima da mesa do café próxima à minha janela. Como quem se despede após a visita, não consigo deixá-la sair de mãos abanando e deposito minha parcela de mim ao lado da floreira de sua janela.
Pergunto-me o que acontecerá aos meus pés se alguma destas visitas resolver ficar e juntarmos nossas janelas? Será que continuarão o caminho de sempre ou seguirão por outros menos tortuosos? Bem, que não sejam inconvenientes e saibam tratar bem a visita ao menos...

Lady España - Lucio Godoy