domingo, 28 de outubro de 2012

Optométrica


um poema nasce da dor
ecoa do delírio mental
um poema é demência
influência da ausência

um poema não é de paz
advém da luta, da rinha
urge, ofega, bate, afaga
poema não diz, contradiz

bom poema escarra, cospe
expõe vísceras, mau odor
vegeta em leito de UTI
respira só por aparelhos

duvide de um poema feliz
vasculhe bem suas quinas
há de encontrar sujeira
podridão, fauna lúgubre

poema excita, lubrifica
cheira a gozo, é lúbrico
penetra os olhos do corpo
tão fundo da carne tremer

por trás do raso do verso
há um moribundo pedinte
bêbado, agressor, tarado
cão sarnento, sangrado

há um viciado em tintas
cheirador de alfarrábios
fumante de vagas ideias
comedor de pão com nada

esperante do invisível
na rotunda do existir
a emprestar seu fitar
às vistas descoloridas

quarta-feira, 24 de outubro de 2012

Os Smurfs

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Quando criança era tão fã destas criaturinhas que a comemoração de meu quinto aniversário teve como tema os próprios. Neste ano fui convidado a conceber um espetáculo onde os azuis criados pelo belga Peyo ganham os palcos com texto, direção, iluminação e canções de minha autoria (as últimas com harmonia, arranjos e gravações de Lui Barbosa e Bernardo Flesch). A estreia ocorrerá no Teatro Pedro Ivo, em novembro, nos dias 17 às 18h e 18 às 15h30min e 18h. Um trabalho que ofereço integralmente à minha filha, a quem chamo carinhosamente na página de dedicatória do texto de Smurf Manuela. 

Trecho da peça: 

[...]

Vovô Smurf – Se este for o céu Smurf, eu só posso ser Smurfeus seu grande bobo!

Papai Smurf (Eufórico) - Vovô Smurf?!!! Como o senhor che.. Mas já faz quase um milênio desde que partiu!! (Para os Smurfs) Venham Smurfs, conheçam o Vovô Smurf! Ele é o Papai Smurf do Papai Smurf!

Gênio – Mas porque o senhor nunca nos disse que tinha um Papai Smurf, Papai Smurf?

Papai Smurf – Bem Gênio, sobre a saudade não se fala; se cala, se sente.

terça-feira, 9 de outubro de 2012

Animália


o teu tesão é de puritana
arisco, enjaulado, tupi
em ameaça de extinção
fingidor na defesa e cio

eu sou visita indiscreta
entro sem chave, abro janela
vento é na cara, pra voo
se saio é porta cerrada

possuo dedos de poeta
mentalidade de músico
palavras de ator barato
sono de pintor cubista

choro tal cantor cubano
ao pedir caipira de rum
brindo: por Cuba libre!
pero perdí la ternura

(mierda!)

meus olhos vadios te esculpem
filmam em plano sequência
tua saída do banho, desnuda
emburrada, cabelo encharcado

deita, jura paixão por mim
mente e como o faz bem
esconde a mensagem do outro
só para me amar inteira, ali

os dois cobertos de orgulho
em guerra enternecida, afônica
estranhos de íntima visita
inimigos cordiais no prazer

segunda-feira, 8 de outubro de 2012

Gela





Sempre bom lembrar: Obra de ficção, indignação e inspiração.

Não que seja a virgem imaculada
Milagreira, santa ou algo parecido
Possui sim qualquer coisa de anjo
Que ampara em sorriso ou assinatura

Maneiras de lady, pensamento à  frente
Ajeita cabelo, batom, firma a postura
Resoluta, combatente, não altera o tom
ao rimar prefeitura, lisura, cura, cultura

Leoa da ilha, mané, catarina, tripeira
Almeja em Desterro a França do Zé Peri
Em tintas azuis, brancas e vermelhas
Sem o "pequeno príncipe" torto daqui

Sim, também joga, opera a máquina
Mas com mãos de avó, cheiro de mãe
Creme, loção, na delicadeza do anseio
Com todo amor de filha, furor de fêmea

Pra lá da ponte rosa não chora, ressente
Reflete, reconhece, se aconchega, dorme
Pouco e no embalo do salgado vento sul
que sopra - em prece - velas bruxuleantes

Não é mais faceira a moça do Rancho
E amanhece a cidade de cabeça quente
Sem chuva de choro, enlutada de sol
Enquanto o amanhã gela; albino, nevado

sábado, 6 de outubro de 2012

Aguadeiro


os calafrios calorosos
sobressaltos em sonhos
olhar em preto e branco
meu riso tritesíssemo

não por fé, nem por febre
minha doença é congênita
sofro de aquarianismo,
ascendências, inacontecências

vírgulas, pontos, reticências
avio-me receitas de jornal
oráculo de tolo que me pesca
pondo-me peixe fora d'água

dentro da salinha de vidro
resta o reflexo na parede
a convivência com a solitude
ânfora por Ganimedes derramada

não sirvo pra mar ou rio
me cabe a ficção zodiacal
estampada no horóscopo
vanguardista, louco, sonhador

traduzo-me no elemento ar
vida aberta, livre, puro
vital, necessário, invisível
pairando sobre tudo e nada

só cesso na dúvida desaguada
na lágrima represada de bicho
nos teus pulmões que carregam
o oxigênio do meu amor sufocado

segunda-feira, 1 de outubro de 2012

terminal


de tudo resta a impaciência
uma pitada de sal, enxaqueca
lápis de olho atirado na pia
fragrância cítrica incensada

fica o silêncio retumbante
fotografia na mesa de centro
raspas de gelo liquefeitas
falta de ar na madrugada

então a manhã vem chuvosa
com face triste, consonante
relampejam soluços, saudade
garoam lágrimas e suor frio

dedos hesitam frente ao celular
a maldita memória não falha
recobra o número feito mantra
roga-se Alzheimer como praga

que seja depressão de segunda
o dia que devora a humanidade
pensa, caminha, repensa, senta
de tudo resta a impaciência