quinta-feira, 29 de novembro de 2012

Serve dor


agradeço pela nobilíssima consideração
por oferecer-me alto posto na intimidade
'interventor se o coração estiver mal'
sentir-me-ia deveras útil, mas digo não

irrita-me a investidura do cargo público
esta falta do que fazer quando ficares bem
os cortes de verba pra celular e internet
evasivas justificando falha na comunicação

sei, não são parcos os candidatos à vaga
currículos fervem via e-mail, inbox, olás
ordene-os por boa aparência, saldo em conta
estagiários com boa família servem também

quanto a mim sairei de cena feito a morte
súbito, silencioso, definitivo, em fermata
então o capitalismo regenera, dia amanhece
provo amor em concurso, você outro empregado

segunda-feira, 26 de novembro de 2012

À Deus


olho para o reflexo da lua à pino
no prédio-espelho pedante, frontal
desperto num meio-dia às avessas
eremita da madrugada in Downtown

reabro a loja de ideias noturnas
aos clientes vendo palavras íntimas
sou executivo do mercado de poemas
invisto meus sentimentos, corro riscos

o silêncio dominical remete ao mar
repuxa sua renda à beira da praia
depois vomita a Segunda frenética
onda de delírios, sons e problemas

não durmo, tampouco quero acordar
amparo a foto dela numa das mãos
sobra na outra o café embriagado
por um destilado de milho qualquer

forjo situações num metal precioso
palavras, desejos, anseios, senões
a negativa futura ecoa no presente
põe-me a almejar plenitude divinal

serei um deus a censurar a alvorada
andrógeno, louco, sedutor e egoísta
guardarei tua alma no templo-coração
morará sempre em mim a deusa poetisa

sábado, 10 de novembro de 2012

Em xeque


Negociando comigo não sou do tipo amigo.
Não vendo-me fiado nem poso de fiador,
Não tem preço de banana, nem promoção.
É sem crédito cretino ou boleto bolado,
Debilito no débito, mas pago a mim cada centavo.

Anos de convívio fizeram de mim meu chegado.
Chequei e vi-me prezado, cultivei por mim apreço.
Não sou boneco de venda, sou sem preço, com valor.
Não me empresto, presto ou compro, doo-me.
Doaria-me a ti fosse pra doer na alma ou no bolso.

Acontece que desta vez concedi-me um prazo.
Juro bem jurado que sem moratória ou cartão
Sou do tempo do cheque, passei-me um voador
Tem canto de tico-tico, voo de falcão-peregrino
migração enviesada em bando de andorinha

Pré-datei minha ânsia, pus em xeque a liberdade
Cruzei num canto da folha e os dedos cruzei em figa
Que siga-me a sorte em trinta, sessenta, noventa
Pra no fim dos noves fora, puro ar bater nas ventas
Sem calote, filhote ou dote, sem ventanear a vida.

quarta-feira, 7 de novembro de 2012

Anexo


eu acho que tudo é perdido
se esvai a areia da praia
escuto o barulho de ondas
pressinto o tempo fugindo

pro teu presente envelopado
corro e me para o carteiro
ocorre que ando sem freio
fico feliz, mas sem trocado

troco a roupa para me ocupar
decido sair por aí a tua procura
tocam Vivaldi no meu quintal
atraso pois os olhos marejam

recordo a infância sem avô
a adolescência desperdiçada
o adulto niilista e sem nada
aquela menina sem paz ou pai

no dia a quarta-feira arde
baixa o sol, vem o cigarro
whisky, teu perfume passa
meus pés brancos retrilham

descem as escadas descalços
erro a porta de casa, fujo (de quem?)
o zelador chama: "sua revista!"
grito "Bravo!", ele resmunga

volto, piso na bituca em brasa
lembro do Milton de frágil saúde
'sei que nada será como antes'
o amanhã ecoa em toda a casa

quase esqueço do hoje, agora
rogo mau agouro à cidade-àgora
tanta balbúrdia e tu amas baixinho
te vislumbro no Quintana de bolso

só então te chamo, nos reconhecemos
sinto que conosco é sempre assim
nos desencontramos nos encontros
para o reencontrar ser mais intenso

xingamos o mundo em silêncio
choramos a existência sem lágrimas
namoramos sem ciúmes ou beijo
como se trasbordássemos o vazio


Nada será como antes by Milton Nascimento on Grooveshark