sexta-feira, 22 de abril de 2011

Poema acordado

Em ti aspiro minhas melhores inspirações.
Já não expiro ar senão, sentimento.
Tornei coração meus pulmões.
Te pulso, te respiro, me arrebato e me arrebento.

Por ser mais um em teu humanal.
Por ser nau a partir só e em choro do cais.
Não ter teu colo e ser esse coro de silêncio atonal.
Por ser pouco, poucochinho, nada de mais.

Sem abrigo ou amigo, cá contigo me sonho.
Adentro ralé e a pé os arcos sutis de tua boca,
Me banho folgazão na fímbria de teu olhar tristonho,
Me recomponho ao supor teu grito perene pela voz pouca.

Reclusa entre gracílimas escusas, me recusas.
Tens a hábil certeza daquele que nada sabe.
A inútil fortaleza do que provoca, usa e abusa.
Cá no sonho adormeço para que em verdade ele não desabe.


Paulinho Nogueira - Se Ela Perguntar/Dois Destinos



domingo, 17 de abril de 2011

A cor do conto (ou O homem que sabia Djavanês)

Madurecer a madrugar. Amador ser para acordar.
Meu café, minha fé expressa em nós.
Alvorecer. Foi por um triz entre ceder a dias vis.
Noite ser. Esconder o sol em Paris.

Te sonho contraluz num tom âmbar noir
Você conduz à estrada sai de bar em bar
e se traduz inglesa que é pra disfarçar;
e me seduz discreta pra não me assustar.

Acordo tonto e ébrio de tanto sonhar.
Acordo pronto a ponto de recomeçar.
Acordes em encontro para eu te cantar.
A cor do conto em quadros que você está.

A cor do conto (ou O homem que sabia Djavanês) - Mário César






quarta-feira, 13 de abril de 2011

Soneto "de maior"

Para Ana Paula Beling

Há na vida um dia em que maduros somos?
Não quando queremos. Nem querendo os outros.
Madurar é início. Fim, não. Como nos compomos,
Se em versos algemados ou em acordes soltos.

A alguns enganas com a face menina
E com riso sacana, afanas paixões.
És soberana a estas, levianas àquelas... Que sina!
Porém já todos sabem por tuas ações

Que já não és semente, tampouco membrana
E não há registro geral que negue:
Há muito és fruto e mulher que ama.

És de fibra, talento, quem faz e consegue.
Pretensa palhaça, a voz e já veterana.
Que não cesse. Que assim os anos te carreguem.

28/01/2009.

domingo, 10 de abril de 2011

Baby, isto não é uma carta de amor.


Isso de te ver assim ao longe já não quero.
É bom no começo, para serem os laços criados e os medos emudecidos.
Porém, ao passo que vamos afinando as afinidades o que mais se quer é tocar.
Feito as cordas e o violão. Somente no encontro de ambos faz-se música, toca-se.
É o que nos falta. Encontro.
Em meu eu-violão o tu-encordamento já está posto.
Afinado e a fim de tudo. De ser bossa, blues ou toada. Ora, mas o que nos falta então?
O sentir, o tocar, o humano.
O inalar dos perfumes a entrelaçarem suas notas e fragrâncias no ar, o escutar dos sotaques que se pretendem semelhantes num futuro breve, o adentrar na intimidade alheia através da janela dos olhos, o perceber-se semelhante e diferente querendo no fundo apenas unir-se ao outro.
A alma do violão é o humano. A alma do humano é o outro humano.
O que o move, lança à frente, conduz. O que o toca, o torna música e, em certo aspecto, o torna também violão.
Vinícius já nos descreveu "uma mulher chamada guitarra". Aqui me apresento como possibilidade de "um homem chamado violão". Trocadilhos à parte, é o violão (guitarra) um dos poucos instrumentos que exige ser abraçado, aconchegado e precisa de carinho para se fazer ouvir. O humano necessita do mesmo carinho e do mesmo humano para se fazer feliz.
Temo ter me perdido nas metáforas. Já não sei o que quero com tantas delas. Suponho ter vindo falar do que não quero.
Isso de te ver assim ao longe já não quero. Não.
Feito um espreitador a observar sua vítima ou um policial o seu suspeito? Não quero.
Não sirvo pra vilão, nem você pra mocinha de filme de suspense do Hitchcock.
Não silenciarei a ponto de que não percebas minha presença, nem te gritarei demonstrando desespero.
Agora, fingir te mal querer ou não querer para que percebas o quanto te... ? Não quero!
Sem mais rodeios? Quero a fome de quem bebe, a sede de quem come, a coragem de quem não tem nome. Quero essa simbiose sinestésica simples em toda sua complexidade que um dia atinaram chamar de paixão.
Do "coração do coração", te quero.

Mensagem - Cícero Nunes/Aldo Cabral
Cartas de amor - Álvaro de Campos (Fernando Pessoa). Por Maria Bethânia.




Citações: Cartas de amor. Álvaro de Campos (Fernando Pessoa).
Uma mulher chamada guitarra. Vinícius de Moraes.

domingo, 3 de abril de 2011

A PUTA ADULTA E A MULTA OCULTA

Quando se deu conta que mais um dia passara praticamente improdutivo, antes que o relógio digital virasse o último dos noves de seu ciclo mais ordinário do que ordinal, tomou finalmente uma decisão sensata e fora pra sacada de seu bangalô fumar e beber a última das cervejas. Ao adentrar o "mundo do lá fora", antes mesmo que pudesse acender o cigarro, deparara-se com um velho amigo cruzando a rua. Não se falaram. Naquele momento frustou-se, mais tarde achou melhor. Afinal, a tamanha proporção das resoluções tomadas naquela noite não chegariam a tal porte se intermediadas pelo sentimentalismo embutido em uma velha amizade. Amigo é um ser que pretende o outro imutável para que possam sempre reconhecerem-se mutuamente como quando do primeiro aceno amistoso. Suas resoluções exigiam mudanças. Um amigo não as permite. Pelo menos o tal amigo assim agiria. Preferiu calar a boca com um gole antes que a mesma enunciasse um "oi" automático como tantas vezes o fizera. Acontece que enquanto a cerveja descia rapidamente por entre as entranhas, uma conhecida prostituta do bairro descia lânguida a ladeira que dava de lado para a sacada. Se conheciam da rua desde meninos, mas não eram íntimos. Ele acompanhou a distância e sempre atento as falácias das carolas da igreja, o despertar de sua atual profissão. A menina dispersa e com notas baixas na escola, a adolescente que passou na mão de todos os meninos da quadra (menos por ele), a adulta, a puta. Seu olhar foi a marginalizando com o tempo. Mas naquele momento não poderia fingir não tê-la visto. O cigarro numa mão, a cerveja na outra, a pose descontraída na sacada fora um convite para seus olhares cruzarem-se. Enfim voltaram a se olhar. Não era como nos tempos de criança. A inocência para ambos era uma senhora em fase terminal. Dado o adiantado da hora ela só podia estar na rua a negócios. Ele após esbanjar tanto tempo de seu dia, poderia (re)compensá-lo à noite. Era a oportunidade para que a vida os tornassem íntimos finalmente. No mais, "O que seria a vida senão um 'caminhão de passatempos'?", pensou ele. Então uma cinza caiu. Lembrou do cigarro e o tragou. Ao acompanhar a fumaça de seu peito exalada em direção ao céu, deparou-se com as estrelas. Era o mesmo teto estrelado de quando eram ambos crianças. Os olhares agora desviados , seguiram seu rumo em direção a não-intimidade novamente. A ela restou a cabine escura de um caminhão de passagem pela cidade ou o fracasso de uma noite sem clientes. A ele a certeza da mudança não comentada com o amigo. Já não aguentava o mesmo amigo, a mesma sacada, o mesmo teto estrelado, a mesma puta. Decidiu ir embora. Sem trocar mais palavra alguma com o amigo, nem olhares com a velha meretriz. Deu-se conta que estava ele em todos os lugares da cidade, mas a cidade já não estava nele. Deu o derradeiro gole na cerveja, desceu da sacada e esperou à beira da estrada o próximo "caminhão de passatempos" que o levasse à cidade mais distante dali. Trôpego, não enxergara bem sob a luz da madrugada e ao invés do "caminhão de passatempos", acabou embarcando no "caminhão das ilusões". Ao se dar conta - já durante o dia - virou-se para si mesmo e perguntou: "No fim da estória, quem é a puta afinal?"

Sentado à beira do caminho - Erasmo Carlos e Roberto Carlos