É bom no começo, para serem os laços criados e os medos emudecidos.
Porém, ao passo que vamos afinando as afinidades o que mais se quer é tocar.
Feito as cordas e o violão. Somente no encontro de ambos faz-se música, toca-se.
É o que nos falta. Encontro.
Em meu eu-violão o tu-encordamento já está posto.
Afinado e a fim de tudo. De ser bossa, blues ou toada. Ora, mas o que nos falta então?
O sentir, o tocar, o humano.
O inalar dos perfumes a entrelaçarem suas notas e fragrâncias no ar, o escutar dos sotaques que se pretendem semelhantes num futuro breve, o adentrar na intimidade alheia através da janela dos olhos, o perceber-se semelhante e diferente querendo no fundo apenas unir-se ao outro.
A alma do violão é o humano. A alma do humano é o outro humano.
O que o move, lança à frente, conduz. O que o toca, o torna música e, em certo aspecto, o torna também violão.
Vinícius já nos descreveu "uma mulher chamada guitarra". Aqui me apresento como possibilidade de "um homem chamado violão". Trocadilhos à parte, é o violão (guitarra) um dos poucos instrumentos que exige ser abraçado, aconchegado e precisa de carinho para se fazer ouvir. O humano necessita do mesmo carinho e do mesmo humano para se fazer feliz.
Temo ter me perdido nas metáforas. Já não sei o que quero com tantas delas. Suponho ter vindo falar do que não quero.
Isso de te ver assim ao longe já não quero. Não.
Feito um espreitador a observar sua vítima ou um policial o seu suspeito? Não quero.
Não sirvo pra vilão, nem você pra mocinha de filme de suspense do Hitchcock.
Não silenciarei a ponto de que não percebas minha presença, nem te gritarei demonstrando desespero.
Agora, fingir te mal querer ou não querer para que percebas o quanto te... ? Não quero!
Sem mais rodeios? Quero a fome de quem bebe, a sede de quem come, a coragem de quem não tem nome. Quero essa simbiose sinestésica simples em toda sua complexidade que um dia atinaram chamar de paixão.
Do "coração do coração", te quero.
Mensagem - Cícero Nunes/Aldo Cabral
Cartas de amor - Álvaro de Campos (Fernando Pessoa). Por Maria Bethânia.
Citações: Cartas de amor. Álvaro de Campos (Fernando Pessoa).
Quando se deu conta que mais um dia passara praticamente improdutivo, antes que o relógio digital virasse o último dos noves de seu ciclo mais ordinário do que ordinal, tomou finalmente uma decisão sensata e fora pra sacada de seu bangalô fumar e beber a última das cervejas. Ao adentrar o "mundo do lá fora", antes mesmo que pudesse acender o cigarro, deparara-se com um velho amigo cruzando a rua. Não se falaram. Naquele momento frustou-se, mais tarde achou melhor. Afinal, a tamanha proporção das resoluções tomadas naquela noite não chegariam a tal porte se intermediadas pelo sentimentalismo embutido em uma velha amizade. Amigo é um ser que pretende o outro imutável para que possam sempre reconhecerem-se mutuamente como quando do primeiro aceno amistoso. Suas resoluções exigiam mudanças. Um amigo não as permite. Pelo menos o tal amigo assim agiria. Preferiu calar a boca com um gole antes que a mesma enunciasse um "oi" automático como tantas vezes o fizera. Acontece que enquanto a cerveja descia rapidamente por entre as entranhas, uma conhecida prostituta do bairro descia lânguida a ladeira que dava de lado para a sacada. Se conheciam da rua desde meninos, mas não eram íntimos. Ele acompanhou a distância e sempre atento as falácias das carolas da igreja, o despertar de sua atual profissão. A menina dispersa e com notas baixas na escola, a adolescente que passou na mão de todos os meninos da quadra (menos por ele), a adulta, a puta. Seu olhar foi a marginalizando com o tempo. Mas naquele momento não poderia fingir não tê-la visto. O cigarro numa mão, a cerveja na outra, a pose descontraída na sacada fora um convite para seus olhares cruzarem-se. Enfim voltaram a se olhar. Não era como nos tempos de criança. A inocência para ambos era uma senhora em fase terminal. Dado o adiantado da hora ela só podia estar na rua a negócios. Ele após esbanjar tanto tempo de seu dia, poderia (re)compensá-lo à noite. Era a oportunidade para que a vida os tornassem íntimos finalmente. No mais, "O que seria a vida senão um 'caminhão de passatempos'?", pensou ele. Então uma cinza caiu. Lembrou do cigarro e o tragou. Ao acompanhar a fumaça de seu peito exalada em direção ao céu, deparou-se com as estrelas. Era o mesmo teto estrelado de quando eram ambos crianças. Os olhares agora desviados , seguiram seu rumo em direção a não-intimidade novamente. A ela restou a cabine escura de um caminhão de passagem pela cidade ou o fracasso de uma noite sem clientes. A ele a certeza da mudança não comentada com o amigo. Já não aguentava o mesmo amigo, a mesma sacada, o mesmo teto estrelado, a mesma puta. Decidiu ir embora. Sem trocar mais palavra alguma com o amigo, nem olhares com a velha meretriz. Deu-se conta que estava ele em todos os lugares da cidade, mas a cidade já não estava nele. Deu o derradeiro gole na cerveja, desceu da sacada e esperou à beira da estrada o próximo "caminhão de passatempos" que o levasse à cidade mais distante dali. Trôpego, não enxergara bem sob a luz da madrugada e ao invés do "caminhão de passatempos", acabou embarcando no "caminhão das ilusões". Ao se dar conta - já durante o dia - virou-se para si mesmo e perguntou: "No fim da estória, quem é a puta afinal?"
Sentado à beira do caminho - Erasmo Carlos e Roberto Carlos